Estava eu sentado numa pedra à beira de um açude, à boca da noite, concentrado na empreitada de tentar fisgar um peixe, um peixinho qualquer que fosse, a fim de lavar minha honra. Péssimo pescador que sou, de diversas tentativas e lugares diferentes, nunca tive o prazer de pescar um peixe sequer. Estava alí a quase duas horas, e nenhuma piaba sequer. A-pi-edei-me de mim. Do lado que estava do açude avistei "o melhor lugar pra pescar" do outro lado. Aquele cantinho que sempre está ocupado por ser o melhor lugar para as investidas sorrateiras contra os inofensivos (e deliciosos) peixinhos. Animei-me. Minha sorte mudaria. Recolhi a linha de dentro da água - com a isca ainda intacta - e levantei empolgado. Mas enquanto entornava o açude, tiro o celular do bolso. SEIS chamadas perdidas de minha digníssima esposa. Ia retornar quando a sétima chamada acabara de chegar. Atendi.
-Fran! (apelido carinhoso que ela me pusera) Fran! Graças a deus. Já estava preocupada.
-Mas o que aconteceu, amor? Por que tanta aflição?
-Santo da Novela velho chico morreu afogado. venha logo pra casa.
-Ah, tá. Novelas (ela é muuuuuuuuuito noveleira). Decidiram matar o ator principal agora nessa novela? Que trágico. Ele não vai morrer. Vai sumir de novo mas depois aparece. É sempre o mesmo enredo.
-Mas ele morreu mesmo.
-Ah, já passou ele morto?
Irritado com a aflição aparentemente desnecessária da mulher, me aproximava do início da parede do açude, a fim de atravessá-la.
-Estava a trinta metros de profundidade. Venha logo pra casa, amor. Por favor.
-Mas que autor sem criatividade. Não tinha outro tipo de morte pra ele não? Vou dar uns lances alí do outro lado e depois vou pra casa.
-Ele morreu de verdade! (começa a chorar e eu finalmente entendo e me dou conta da gravidade do fato.) Você fica zombando do sentimento da gente. Eu aqui preocupada com você porque você não sabe nadar, e esse açude tem trinta metros de profundidade. Aí recebo a notícia de que o ator morreu, fico aflita, te ligo um monte de vezes e você não atende, e quando atende e a gente tá preocupada, você nem se importa.
-Ah! (me sentindo idiota) "O ATOR" da novela morreu na vida real? Foi isso?
-Foi, Fran. Num vai mais pra canto nenhum não. Venha pra casa, por favor. Estou com o coração apertado.
Eu, meio receioso, decido de fato não mais ir para a borda do açude.
-Claro amor. Já estou indo.
Considero ainda dar uma passadinha num localzinho razinho, onde sempre tinham algumas tilápias-salvar minha honra-, à frente da parede do açude. Avisto um rebanho de bois. Paro, penso, fico com medo dos bois e retorno. Vai que um boi resolve me atacar: "Professor morre após ser atacado por um boi raivoso próximo ao açude" (a mulher me deixou com medo). Enfim, resolvo atender à minha esposa, acalmar o coração dela e resolvo ir pra casa.
Sem honra por não ter pego nenhum peixe.
Sem honra por ter sentido medo dos bois (um moleque chegara e começara a tocar o rebanho).
Trágico.
Chego próximo a minha casa. minha mulher me encontra aliviada. Eu a abraço e a consolo.
É o meu abraço de pêsames pela perda do ator que ela tanto adorava (e que sequer sabia que ela existia). Estou certo de que ela ficará de luto.